UM NOVO PARADIGMA PARA A ANÁLISE DO DISCURSO
Prof.
Paulo Henrique Duque – GELVA[1]
1.
Introdução
O
presente artigo tem por objetivo demonstrar que a Competência Comunicativa
(Hymes 1971) pode e deve auxiliar a compreensão e desenvolvimento da Análise
do Discurso (doravante AD). Pretendemos enfocar a Competência Comunicativa,
sob a luz da filosofia e da psicologia para, dessa forma, apresentar uma
estruturação mais ampla dos conceitos envolvidos com o tema.
Com este enfoque interdisciplinar, estaremos, de certa forma, buscando
explicar o próprio caráter multidisciplinar
que, segundo Van Dijk (1985: 1) tem se evidenciado em AD.
Surgida
e desenvolvida em diferentes disciplinas, a AD se ocupa, principalmente, do
caráter interativo e intersubjetivo do uso da linguagem, através da
investigação e análise de dados reais. De acordo com Stubbs (1987), além
das relações entre língua e sociedade, a AD investiga a língua em seus
diferentes registros (oral ou escrito)[2]
e as propriedades interativas da comunicação cotidiana.
Desde
o inicio dos anos setenta, os estudos relacionados com a AD se multiplicaram
rapidamente e contribuíram para transformá-la em uma interdisciplina formada
da associação entre a Lingüística,
Antropologia, Filosofia, Psicologia e Sociologia. Dell Hymes (1971)
apresentou uma proposta de se
investigar as regras de uso de uma língua nos próprios contextos sócio
situacionais em que a comunicação verbal de um grupo se realiza. Tal
proposta teria que possibilitar a descrição das regras que configuram a
competência comunicativa dos membros da comunidade analisada.
A noção de competência e desempenho[3],
de Chomsky não era suficiente para explicar as regras de uso para
a interação lingüística em sociedade. Esta dicotomia foi criticada por Hymes
(1972) pelo fato de a teoria gerativo-transformacional propor
falante/ouvinte ideais isolados de seu contexto sociocultural.
2.
Competência Comunicativa
Tanto
a distinção entre competência/desempenho como a de langue/parole (SAUSSURE,
1916) surgem da observação das oscilações na gramaticalidade da fala dos
indivíduos. A fala não reflete diretamente o conhecimento gramatical de um
falante adulto de uma língua, já que este não oscila de momento a momento,
tal como o faz a gramaticalidade de seus enunciados. A tarefa do lingüista,
neste caso, será a de descrever o conhecimento permanente de sua língua, ou
seja, sua competência lingüística. Cabe ao sociolingüista e ao psicolingüista
descrever como os fatores psicológicos, fisiológicos ou ambientais
interferem ou interagem com a competência lingüística na produção dos
enunciados "agramaticais" que são típicos das situações
interacionais da comunicação diária.
A
aquisição da competência para o uso pode ser organizada nos mesmos termos
que a aquisição de uma gramática. No meio social em que aprende um sistema
gramatical, a criança adquire, também, um sistema para o uso, que inclui
pessoas, lugares, finalidades, junto com atitudes e crenças relacionadas. Além
disso, de acordo com Hymes, a criança assimila marcas do uso seqüencial da
linguagem na conversação, formas de tratamento, rotinas padrões etc. Nesse
processo de aquisição, está a competência comunicativa da criança, ou
seja, a sua habilidade para participar da sociedade tanto como um membro
falante, como um membro comunicante. Daí, nossa crença num modelo de língua
que, além de refletir os aspectos da competência lingüística, reflete os
fatores sociais e culturais que acompanham o falante-ouvinte na sua vida
social e na sua comunicação. Assim, a comunidade lingüística, na nossa
concepção, deve ser definida em termos de conhecimento compartilhado e de
competência de seus membros para a produção e interpretação da fala
socialmente apropriada.
Assumimos
que a comunicação lingüística[4]
se realiza mediante o domínio da competência comunicativa, chamada
por Hymes
(1971, 1972,
1974) de Etnografia da Comunicação (inter-relação entre Antropologia e
Lingüística). Tal corrente antropológica só começa a se desenvolver no
fim dos anos sessenta e início dos setenta, com Gumperz e Hymes (1964 e
1972). Na visão de Hymes, a Competência Comunicativa deve ser
compreendida como um conjunto de habilidades e conhecimentos necessários para
que os falantes de uma comunidade lingüística possam se entender, ou seja,
tal competência seria a nossa capacidade de interpretar e usar, de maneira
adequada, o significado social das variedades lingüísticas, em quaisquer
circunstâncias. Na nossa concepção, Fischman (1970) é quem define melhor a
Competência Comunicativa. Segundo o autor, qualquer ato comunicativo
entre duas ou mais pessoas em situação de intercambio é regido por regras
de interação social[5].
Esta definição aponta elementos pragmático-lingüísticos e psicológicos
envolvidos na comunicação interpessoal, o que nos permite aproximar do
enfoque interdisciplinar que pleiteamos para a competência comunicativa.
Podemos,
neste ponto, apresentar uma definição mais completa para a Competência
Comunicativa: Ela seria o resultado da inter-relação de várias competências,
como a competência lingüística, a competência sociolingüística, a competência
pragmática e a psicolingüística. Além disso, cada uma dessas competências
seria composta de "sub-competências". Pilleux (2001) desenvolveu um
esquema capaz de abranger os fatos lingüísticos, sociolingüísticos, pragmáticos
e psicolingüísticos na definição de Competência Comunicativa, além de
torna-la mais clara.
Quadro
01:
Esquema resumitivo da Competência Comunicativa, proposto por Pilleux (2001)
a)
contexto proposicional
b) morfologia
1. Competência
c) sintaxe
lingüística
d) fonética e fonologia
e)
semântica
a) regras de interação social
2. Competência
b) modelo “SPEAKING” (Hymes)
Competência
sociolingüística
c) competência interacional
Comunicativa
d) competência cultural
3. Competência
a) competência funcional: intenção
pragmática
b) implicatura: princípio de cooperação
c) pressuposição
a) personalidade
4. Competência
b) sociocognição
psicolingüística
c) condicionamento afetivo
3.
Análise dos elementos que envolvem a Competência Comunicativa
Observamos,
no quadro de Pilleux, que a Competência Lingüística é o que se conhece da
gramática tradicional e dos seus níveis: morfologia, sintaxe, fonética e
fonologia e semântica. A Competência Sociolingüística compreende as regras
de interação social, o modelo speaking de Hymes, a competência
interacional e a competência cultural. A Competência Sociolingüística ou Etnografia
da Fala, como a denominou Hymes (1971), é uma descrição em termos
culturais dos usos contextualizadas da língua e da fala, ou seja, são as próprias
regras de interação social de um grupo, instituição ou comunidade. Esta
definição faz com que devamos nos ocupar de algumas questões, a fim de
entendê-la: 1. dos recursos sociolingüísticos de uma comunidade particular,
incluindo não somente os gramaticais, mas também, um conjunto de potenciais
lingüísticos para o uso e significados sociais; 2. das inter-relações e
organizações contextualizadas dos diversos tipos de discurso e interação
social na comunidade; 3. das relações dos contextos de fala com outros
aspectos da cultura da comunidade tais como organização social, religião e
política; e 4. do uso e da
exploração de recursos no discurso, em situações de fala, eventos de fala
e atos de fala.
Numa
comunidade lingüística, é possível detectarem-se muitas situações de
fala que se associam com o uso da linguagem ou que estão marcadas por sua ausência,
como é o caso das festas, jantares, aulas e cerimônias. Um evento de fala é
a atividade cujos aspectos são regidos por regras ou normas para o uso lingüístico
como, por exemplo, uma conversação particular, uma discussão ou uma
apresentação. Os segmentos de discurso menores que compõem os eventos de
fala são os atos de fala. Esses podem ser uma pergunta, uma ordem ou uma
recriminação durante uma discussão. Da forma como um mesmo tipo de ato de
fala pode ocorrer em diferentes eventos de fala, um mesmo tipo de evento de
fala pode se verificar em distintas situações de fala.
No
modelo Speaking, Hymes indica que os itens que compõem a situação
social são a situação de fala, participantes, finalidades, atos de fala,
tom, instrumentos, normas e gênero. Estes elementos correspondem às regras
de interação social, que respondem, respectivamente, às seguintes
perguntas: onde e quando?, quem e a quem?, para quê?, o quê?, como?, de que
maneira?, acredita?, que tipo de discurso?
A
Competência Interacional invoca o conhecimento e o uso de regras não
escritas de interação em diversas situações de comunicação numa
comunidade sociocultural/lingüística dada. Essas regras estão relacionadas
ao saber como iniciar, continuar e conduzir as conversações e negociar o
significado com outras pessoas; ao tipo de linguagem do corpo apropriado; ao
contato visual e proximidade entre os falantes e à atuação em consonância
com essas regras. É importante observar que as regras reguladoras das transações
estão culturalmente determinadas e variam de cultura para cultura e, dentro
desta, de uma comunidade a outra.
Devemos
nos preocupar com a maneira pela qual os indivíduos manejam a interação
social e tratar de resolver dúvidas tais como os processos discursivos os
quais favorecem ou dificultam a produção e compreensão do domínio da
interação; como os falantes resolvem o uso e defesa de seu turno; que tipos
de interação podem ser distinguidos; qual é o comportamento sociolingüístico
empregado para exercer a relação de autoridade em uma interação; que
estratégias se usam para desafiar tal autoridade.
A
Competência Cultural é a capacidade de os membros de uma cultura
compreenderem as normas de comportamento e atuarem de modo a se entenderem.
Tal competência envolve a compreensão de todos os aspectos da cultura,
especialmente a estrutura social, os valores e crenças das pessoas e o modo
com que assumem que se devem fazer as coisas.
Um
avanço importante na AD é relacionado com as contribuições feitas por
Austin, Searle e Grice, ao discutirem os atos de fala. Enquanto a Sociolingüística
enfatizava relações de variação da língua no contexto social, a Pragmática
considerava os enunciados verbais, não como orações, mas sim como formas
específicas de ação social. Nesta perspectiva, três aspectos devem ser
destacados: a competência funcional (atos de fala incluídos), a implicatura
e a pressuposição. A Competência funcional diz respeito à
capacidade para atingir os propósitos de comunicação em uma língua.
Segundo Pilleux (2001), existe uma série de propósitos para os quais se usa
a língua: para especular, repelir, retratar-se, negar, classificar,
perguntar, perdoar, felicitar, saudar, agradecer, criticar etc. Todos estes são
atos de fala, isto é, como executamos atividades, com base em simples
palavras. Os atos de fala podem variar de uma cultura para outra já que são
o reflexo de diferentes sistemas de valores. A implicatura é um tipo especial
de inferência pragmática. Ela não pode ser considerada como uma inferência
semântica que se relaciona com os significados denotativos das palavras,
frases ou orações. Ao contrário, deve ser compreendida com certas presunções
contextuais vinculadas à “cooperação” dos participantes em uma conversação.
A noção de implicatura (Grice 1975) se baseia na distinção entre o que
se disse e o que se implica ao dizer o que se disse, ou o que não
se disse. Grice distingue dois tipos de implicaturas: convencionais e
conversacionais, ainda que a diferença nem sempre seja nítida. A princípio,
parece que a implicatura convencional dependeria de algo adicional ao
significado normal das palavras, enquanto a implicatura conversacional seria
derivada de condições mais gerais que
determinariam a conduta adequada na
conversação (Levinson 1985).
A
teoria da implicatura de Grice se baseia fundamentalmente em como nós usamos
a língua. Grice identifica quatro máximas de conversação que, segundo ele,
são os princípios subjacentes sobre os quais se baseia o uso cooperativo
eficiente da língua. Estas máximas[6]
expressam uma espécie de princípio cooperativo e são as seguintes: 1o.
Qualidade: faça com que sua contribuição seja verdadeira, não dizendo
aquilo que você crê que seja falso, nem
dizendo aquilo para o que você não tem evidência adequada; 2o.
Quantidade: faça com que sua contribuição seja o mais informativa possível,
na medida que os propósitos da interação exijam, não fazendo sua contribuição
mais informativa do que se requer; 3o. Relevância: faça
com que sua contribuição seja ‘relevante’ e, 4o. Modo:
evite a obscuridade e a ambigüidade, sendo breve e organizado.
A
Pressuposição é outro tipo de inferência pragmática, que parece estar
unida mais estreitamente com a estrutura lingüística das orações. As
pressuposições não podem ser consideradas como semânticas, no sentido
literal do termo porque são muito sensíveis ao contexto e seus significados
estão implícitos em certas expressões, que servem para avaliar a verdade da
oração. Por exemplo, a expressão “acabar de + infinitivo” leva a
uma pressuposição, como em: Acaba de terminar a partida, em que a
pressuposição é a de que a partida não está sendo mais jogada. Outro
exemplo: Lamento que você tenha ido mal, em que a pressuposição
seria a de que “você foi mal” (Reyes 1998).
A
Competência Psicolingüística inclui a personalidade do falante, a
sociocognição e o condicionamento afetivo. Estes dois últimos pontos são
difíceis de separar da competência pragmático-lingüística e poderiam se
incluir nesta, ainda que por uma simples questão metodológica, se mantenham
à parte. A personalidade do falante e dos interlocutores inclui suas
“caixas pretas”, Pilleux (2001). Cada um com seu nível intelectual e
cultural, seu sistema de motivações, além do sexo, idade, classe social,
educação, estado emocional etc. Todos estes elementos constituem sua
identidade. Através da linguagem, os seres não só comunicam informações,
mas também intercambiam significações, a partir dos estados de ânimo.
Sobre o fato de que os esquemas mentais, as atitudes e os valores não são
apenas fenômenos individuais, mas que estão presentes nas mentes dos
integrantes de uma comunidade, se pode assinalar que as representações
mentais, junto às atitudes com que os falantes entram em uma interação e
visualizam um ao outro, afetam a estratégia discursiva a ser utilizada e a
avaliação de como (se) desenvolverá tal interação. Ao compartilhar certos
modelos de representação mental, os membros de uma comunidade contam com uma
base comum para conceituar situações, eventos e atos de fala e também
interpretar a ausência dos mesmos.
A
sociocognição é algo compartilhado pelos integrantes de uma comunidade, o
que não quer dizer que a individualidade seja anulada. Assim, tanto os traços
constantes de uma pessoa como sua personalidade
e seus estados de ânimo são fatores esporádicos que afetam a quantidade e a
qualidade de sua interação em eventos específicos, o que deverá ser
adicionado àqueles elementos contextuais que lhe dão uma marca ao evento de
fala: o espaço social, o momento, o contexto institucional, as normas de
interação que devem se aplicar e a interpretação. A caracterização do
ambiente psicológico com que se marca a situação, o evento de fala e o ato
de fala dependem de todas esses condicionantes.
4.
Observações Finais
Deve-se
entender a Competência Comunicativa como um conjunto de habilidades e
conhecimentos que os falantes de uma língua possuem e que lhes permitem se
comunicar, podendo fazer uso de tal língua em situações de fala, eventos de
fala e atos de fala. O que dissemos e fazemos só tem significado dentro de um
ambiente de conhecimento cultural. O modo com que usamos a língua está preso
à sociocognição coletiva, por meio da qual damos sentido à nossa experiência.
A
competência comunicativa é formada, portanto, pelas competências lingüísticas,
sociolingüísticas, pragmáticas e psicolingüísticas, com suas respectivas
estruturas e funções. É justamente o domínio destas estruturas e funções
que constitui nosso conhecimento de língua. Defendemos que o conhecimento e
tratamento da competência comunicativa, da maneira como a apresentou Hymes
(1971, 1972), complementada com aspectos da competência pragmática e da
competência psicolingüística, tem sido um fator relevante, embora não seja
o único, para estimular o avanço do conhecimento na área da AD.
A
Competência Comunicativa, com o sentido mais amplo e atualizado, que foi
apresentado neste artigo, permite entender que só é possível existir a AD,
num corpus obtido a partir de dados empíricos, já que o uso lingüístico
se dá no contexto, é parte do contexto e, além disso, cria o contexto. O
falante só pode atuar lingüisticamente com êxito se é comunicativamente
competente na sua língua, em outras palavras,
se possui a competência lingüística, sociolingüística, pragmática
e psicolingüística.
REFERÊNCIAS
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_______________.
1995, "Discourse semantics and ideology". Discourse and society
6.2: 243-289.
[1]
Grupo de Estudos Lingüísticos de Valença
[2]
Análise, aqui, concebida fora dos limites da oração.
[3]
Entende-se por Competência Lingüística como
o conhecimento tácito da língua de um falante/ouvinte ideal que
possua um conjunto limitado de regras para produzir um número infinito de
orações nessa mesma língua e Desempenho Lingüístico, por outro lado,
como o uso real dessa língua em situações concretas. Vale lembrar que o
Desempenho pode ser
influenciado por fatores psicológicos tais como medo, distração,
nervosismo etc.; por fatores fisiológicos, tais como dor ou cansaço;
fatores ambientais como ruído, um novo ambiente, etc.
[4]
Sistema gramatical que se usa para a comunicação e que é parte da
cultura.
[5]
"quem fala a quem (interlocutores), que língua
(variedade regional, variedade de idade, sexo ou classe social), onde
(cenário), quando (tempo), sobre o quê (tópico), com que intenções
(propósito) e conseqüências (resultados)" (Fishman
1970: 2)
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