Da sucessão do companheiro
O polêmico art. 1.790 do CC e suas controvérsias principais
por Flávio
Murilo Tartuce Silva
"À
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Pela titularidade."
Um dos
dispositivos mais criticados e comentados da atual codificação privada é o
relativo à sucessão do companheiro, merecendo destaque especial, para os
devidos aprofundamentos:
“Art.
1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas
condições seguintes:
I - se
concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei
for atribuída ao filho;
II - se
concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que
couber a cada um daqueles;
III - se
concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não
havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”.
Já de início,
a norma está mal colocada, introduzida entre as disposições gerais do Direito
das Sucessões. Isso se deu pelo fato do tratamento relativo à união estável ter
sido incluído no CC/2002 nos últimos momentos de sua elaboração. Pelo mesmo
fato, o companheiro não consta da ordem de vocação hereditária, sendo tratado
como um herdeiro especial.
Pois bem, como
primeira premissa para o reconhecimento do direito sucessório do companheiro ou
companheira, o caput do comando enuncia que somente haverá
direitos em relação aos bens adquiridos onerosamente durante a
união. Desse modo, comunicam-se os bens havidos pelo trabalho de um ou de ambos
durante a existência da união estável, excluindo-se bens recebidos a título
gratuito, por doação ou sucessão. Deve ficar claro que a norma não está
tratando de meação, mas de sucessão ou herança, independentemente do regime de
bens adotado. Por isso, em regra, pode-se afirmar que o companheiro é meeiro e
herdeiro, eis que, no silêncio da partes, vale para a união estável o regime da
comunhão parcial de bens (art. 1.725 do CC).
Surge, como
primeira polêmica, problema referente aos bens adquiridos pelo companheiro a
título gratuito (v. g. doação). Se o companheiro falecido tiver apenas
bens recebidos a esse título, não deixando descendentes, ascendentes ou
colaterais, os bens devem ser destinados ao companheiro ou ao Estado? Filia-se
ao entendimento de destino ao companheiro, pela clareza do art. 1.844 do CC,
pelo qual os bens somente serão destinados ao Estado se o falecido não deixar
cônjuge,companheiro ou outro herdeiro. Na famosa tabela
doutrinária elaborada pelo Professor Francisco José Cahali, esse
parece ser o entendimento majoritário, eis que exposta a dúvida em relação à
possibilidade de o companheiro concorrer com o Estado em casos tais. A maioria
dos doutrinadores respondeu negativamente para tal concorrência, caso de Caio
Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite,
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita, José
Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria
Helena Diniz, Mario Roberto de Faria, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides
de Oliveira e Sílvio de Salvo Venosa; além do presente autor. Por outra via,
sustentando que o companheiro deve concorrer com o Estado em casos tais:
Francisco José Cahali, Giselda Hironaka, Inácio de Carvalho Neto, Maria Helena
Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira e Zeno Veloso.[1]
Ato contínuo
de estudo, nota-se que o art. 1.790 do CC reconhece direitos sucessórios ao
convivente em concorrência com os descendentes do autor da herança. Nos termos
do seu inc. I, se o companheiro concorrer com filhos comuns (de ambos), terá
direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho. Por outra
via, se concorrer com descendentes só do autor da herança (descendentes
exclusivos), tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles. O
equívoco é claro na redação dos incisos, uma vez que o primeiro faz menção aos
filhos; enquanto que o segundo aos descendentes. Na esteira da melhor doutrina,
é forçoso concluir que o inciso I também incide às hipóteses em que estão
presentes outros descendentes do falecido. Nesse sentido, o Enunciado 266
CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil: “Aplica-se o inc. I
do art. 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente
com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos
comuns”. Na tabela doutrinária de Francisco Cahali, tal
conclusão é quase unânime, assim pensando Caio Mário da Silva Pereira,
Christiano Cassettari, Francisco Cahali, Giselda Hironaka, Inácio de Carvalho
Neto, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita,
José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Rolf Madaleno, Sebastião
Amorim e Euclides de Oliveira: além do presente autor. Em sentido contrário,
pela aplicação do inc. III do art. 1.790 do CC, em situações tais, apenas Maria
Berenice Dias e Mário Roberto Carvalho de Faria. [2]
Situação não
descrita na norma refere-se à sucessão híbrida, ou seja, caso
em que o companheiro concorre, ao mesmo tempo, com descendentes comuns e
exclusivos do autor da herança. Não se olvide que a expressão sucessão
híbrida foi cunhada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka,
professora titular da Universidade de São Paulo.[3] Sobre tal problemática, existem três
correntes fundamentais bem definidas:
“1ª
Corrente – Em casos de sucessão híbrida, deve-se aplicar o inciso I do
art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem comuns, já que
filhos comuns estão presentes. Esse entendimento é o majoritário na tabela
doutrinária de Cahali: Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari,
Francisco Cahali, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, José Fernando Simão,
Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Daneluzzi,
Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Silvio de Salvo
Venosa.
2ª
Corrente – Presente a
sucessão híbrida, subsume-se o inciso II do art. 1.790, tratando-se todos os
descendentes como se fossem exclusivos (só do autor da herança). Este autor
está filiado a tal corrente, assim como Gustavo René Nicolau, Maria Helena
Diniz, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso. Ora, como a
sucessão é do falecido, em havendo dúvida por omissão legislativa, os
descendentes devem ser tratados como sendo dele, do falecido. Anote-se que
julgado do TJSP adotou essa corrente, concluindo que entender de forma
contrária violaria a razoabilidade: “INVENTÁRIO. PARTILHA JUDICIAL.
PARTICIPAÇÃO DA COMPANHEIRA NA SUCESSÃO DO DE CUJUS EM RELAÇÃO AOS BENS
ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA DA
COMPANHEIRA COM DESCENDENTES COMUNS E EXCLUSIVOS DO FALECIDO. HIPÓTESE NÃO
PREVISTA EM LEI. ATRIBUIÇÃO DE COTAS IGUAIS A TODOS. DESCABIMENTO. CRITÉRIO QUE
PREJUDICA O DIREITO HEREDITÁRIO DOS DESCENDENTES EXCLUSIVOS, AFRONTANDO A NORMA
CONSTITUCIONAL DE IGUALDADE ENTRE OS FILHOS (ART 227, § 6º DA CF). APLICAÇÃO,
POR ANALOGIA, DO ART 1790, II DO CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE. Solução mais
razoável, que preserva a igualdade de quinhões entre os filhos, atribuindo à
companheira, além de sua meação, a metade do que couber a cada um deles.
Decisão reformada Recurso provido. (TJSP, Agravo de instrumento n.
994.08.138700-0, Acórdão n. 4395653, São Paulo, Sétima Câmara de Direito
Privado, Rel. Des. Álvaro Passos, julgado em 24/03/2010, DJESP 15/04/2010. No
mesmo sentido: TJSP, Agravo de instrumento n. 652.505.4/0, Acórdão n. 4068323,
São Paulo, Quinta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Roberto Nussinkis Mac
Cracken, julgado em 09/09/2009, DJESP 05/10/2009)
3ª Corrente – Na sucessão híbrida,
deve-se aplicar fórmula matemática de ponderação para solucionar o problema.
Entre tantas fórmulas, destaca-se a Fórmula Tusa, elaborada por Gabriele Tusa,
com o auxílio do economista Fernando Curi Peres.[4] A
fórmula é a seguinte”:

Superada a
controvérsia a respeito da sucessão híbrida, seguindo na leitura e
estudo do art. 1.790 do CC, preconiza o seu inciso III se o companheiro ou
convivente concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço
da herança. Como outros parentes sucessíveis, leiam-se os
ascendentes e os colaterais até quarto grau. Como se verá, há julgados que
reconhecem a inconstitucionalidade dessa previsão, por colocar o companheiro em
possível desfavorável em relação a parentes longínquos, com os quais muitas
vezes não se têm contato social. Ora, muitas vezes não se sabe sequer o nome de
um tio-avô, de um sobrinho-neto ou mesmo de um primo. Deve ficar claro que este
autor está filiado à tese de inconstitucionalidade do comando.
Por fim,
consagra o inciso IV do art. 1.790 do CC que não havendo parentes sucessíveis –
descendentes, ascendentes e colaterais até o quarto grau -, o companheiro terá
direito à totalidade da herança.
Superada a
leitura do art. 1.790 do CC, outra questão controvertida a respeito da sucessão
do companheiro se refere ao direito real de habitação sobre o imóvel do casal,
eis que o CC/2002 não o consagra expressamente. Todavia, apesar do silêncio do
legislador, prevalece o entendimento pela manutenção de tal direito sucessório.
Nesse sentido, o Enunciado 117 CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil:
“o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não
ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação
analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da
CF/88”. Como se nota, dois são os argumentos que consta do enunciado
doutrinário. O primeiro é que não houve a revogação expressa da Lei 9.278/1996,
na parte que tratava do citado direito real de habitação (art. 7º, parágrafo
único). O segundo argumento, mais forte, é a prevalência do citado direito
diante da proteção constitucional da moradia, retirada do art. 6º da CF/1988, o
que está em sintonia com o Direito Civil Constitucional. De fato, esse
entendimento prevalece na doutrina nacional. Na citada tabela
doutrinária, assim deduzem Christiano Cassettari, Giselda Hironaka,
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita, José
Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria
Helena Diniz, Maria Helena Daneluzzi, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno,
Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira, Sílvio de Salvo Venosa e Zeno Veloso;
além deste autor.[5] Não é diferente a conclusão da
jurisprudência, havendo inúmeros julgados que concluem pela manutenção do
direito real de habitação a favor do companheiro (por todos: TJSP, Agravo de
instrumento n. 990.10.007582-9, Acórdão n. 4569452, Araçatuba; Primeira Câmara
de Direito Privado, Rel. Des. De Santi Ribeiro, julgado em 29/06/2010,
DJESP 28/07/2010; TJRS, Apelação cível n. 70029616836, Porto Alegre, Sétima
Câmara Cível, Rel. Des. André Luiz Planella Villarinho, julgado em
16/12/2009, DJERS 06/01/2010, pág. 35; TJDF, Recurso n.
2006.08.1.007959-5, Acórdão n. 355.521, Sexta Turma Cível, Relª Desª Ana Maria
Duarte Amarante Brito, DJDFTE 13/05/2009, pág. 145; TJSP, Apelação n.
573.553.4/2, Acórdão n. 4005883, Guarulhos, Quarta Câmara de Direito
Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, julgado em 30/07/2009, DJESP
16/09/2009; TJSP, Apelação com revisão n. 619.599.4/5, Acórdão n. 3692033, São
Paulo, Sexta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Percival Nogueira, julgado em
18/06/2009, DJESP 14/07/2009).
De toda sorte,
a conclusão não é unânime, pois há quem entenda que tal direito não persiste
mais, tendo o legislador feito silêncio eloquente: Francisco José
Cahali, Inácio de Carvalho Neto e Mário Luiz Delgado. No mesmo sentido podem
ser encontradas algumas ementas (cite-se: TJSP, Apelação n. 991.06.028671-7,
Acórdão n. 4621644, São Paulo, Vigésima Segunda Câmara de Direito Privado, Rel.
Des. Campos Mello, julgado em 26/07/2010, DJESP 12/08/2010 e TJSP, Apelação com
revisão n. 473.746.4/4, Acórdão n. 4147571, Fernandópolis, Sétima Câmara
de Direito Privado B, Relª Desª Daise Fajardo Nogueira Jacot, julgado em
27/10/2009, DJESP 10/11/2009).
Questão de
maior relevo refere-se à suposta inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC, o
que é suscitado por alguns dos nossos maiores sucessionistas. De
início, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka é uma das juristas que sustenta
ser o dispositivo inconstitucional, por desprezar a equalização do
companheiro ao cônjugeconstante do art. 226, § 3º, da CF/1988.[6] Do mesmo modo, Zeno Veloso lamenta a
redação do comando, lecionando que “As famílias são iguais, dotadas da mesma
dignidade e respeito. Não há, em nosso país, família de primeira classe, de
segunda ou terceira. Qualquer discriminação, neste campo, é nitidamente
inconstitucional. O art. 1.790 do Código Civil desiguala as famílias. É
dispositivo passadista, retrógrado, perverso. Deve ser eliminado, o quanto
antes. O Código ficaria melhor – e muito melhor – sem essa excrescência”.[7]
A tese da
inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC encontra amparos em inúmeros julgados
dos Tribunais, mas com uma grande variação de entendimentos, conforme se pode
extrair do resumo a seguir:
“- Existem
julgados que reconhecem a inconstitucionalidade somente do inc. III do art.
1.790, ao prever que o companheiro recebe 1/3 da herança na concorrência com
ascendentes e colaterais até quarto grau. Repise-se que este autor é favorável
à tese de inconstitucionalidade somente desse inciso, por ser mesmo
desproporcional, desprestigiando a união estável. Nesse sentido: “AGRAVO DE
INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. DIREITO À TOTALIDADE DA
HERANÇA. PARENTES COLATERAIS. EXCLUSÃO DOS IRMÃOS DA SUCESSÃO. INAPLICABILIDADE
DO ART. 1790, INC. III, DO CC/02. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 480
DO CPC. Não se aplica a regra contida no art. 1790, inc. III, do CC/02, por
afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de
igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto
da união estável em relação ao casamento. Assim, devem ser excluídos da
sucessão os parentes colaterais, tendo o companheiro o direito à totalidade da
herança. Incidente de inconstitucionalidade argüido, de ofício, na forma do
art. 480 do CPC. Incidente rejeitado, por maioria. Recurso desprovido, por
maioria”. (TJRS, Agravo de instrumento n. 70017169335, Porto Alegre, Oitava
Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, julgado em 08/03/2007,
DJERS 27/11/2009, pág. 38). Concluindo do mesmo modo: TJSP, Agravo de
instrumento n. 654.999.4/7, Acórdão n. 4034200, São Paulo, Quarta Câmara de
Direito Privado, Rel. Des. Teixeira Leite, julgado em 27/08/2009, DJESP
23/09/2009 e TJSP, Agravo de instrumento n. 609.024.4/4, Acórdão n. 3618121,
São Paulo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Caetano Lagrasta,
julgado em 06/05/2009, DJESP 17/06/2009.
- Há ementas
que sustentam a inconstitucionalidade de todo art. 1.790 do CC, por trazer
menos direitos sucessórios ao companheiro, se confrontado com os direitos
sucessórios do cônjuge (art. 1.829). Assim: “DIREITO SUCESSÓRIO. Bens
adquiridos onerosamente durante a união estável Concorrência da companheira com
filhos comuns e exclusivo do autor da herança. Omissão legislativa nessa
hipótese. Irrelevância. Impossibilidade de se conferir à companheira mais do
que teria se casada fosse. Proteção constitucional a amparar ambas as entidades
familiares. Inaplicabilidade do art. 1.790 do Código Civil. Reconhecido direito
de meação da companheira, afastado o direito de concorrência com os
descendentes. Aplicação da regra do art. 1.829, inciso I do Código Civil.
Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO”. (TJSP, Apelação n. 994.08.061243-8,
Acórdão n. 4421651, Piracicaba, Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Élcio
Trujillo, julgado em 07/04/2010, DJESP 22/04/2010).
- Ainda podem
ser encontradas decisões que suspendem o processo até que o Órgão Especial do
Tribunal reconheça ou não a constitucionalidade da norma: “AGRAVO DE
INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE ACATADA PELO
MAGISTRADO DE 1º GRAU. ARTIGO 1790, INCISO III, DO CÓDIGO
CIVIL. RECURSO QUE VISA O RECONHECIMENTO DA CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA LEGAL.
COMPETÊNCIA PARA JULGÁ-LA DO ÓRGÃO ESPECIAL. ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
SUSPENSÃO DO JULGAMENTO DO RECURSO DE AGRAVO. REMESSA DOS AUTOS AO ÓRGÃO
ESPECIAL. 1. Nos tribunais em que há órgão especial, a declaração de
inconstitucionalidade de Lei ou ato normativo do poder público, tanto a
hipótese de controle concentrado como na de incidental, por força da norma
contida no art. 97 da Constituição Federal, somente pode ser declarada pelo
voto da maioria absoluta dos membros que o compõem. 2. Se os integrantes do
órgão fracionário - Câmara Cível - Se inclinam em manter a argüição de
inconstitucionalidade formulada pelos recorridos em 1º grau, o julgamento do
recurso de agravo de instrumento deve ser suspenso, com a remessa dos autos ao
órgão especial para que o incidente de inconstitucionalidade seja julgado,
ficando a câmara, quando os autos lhe forem restituídos para que o julgamento
do recurso tenha prosseguimento, vinculada, quanto à questão constitucional, à
decisão do órgão especial”. (TJPR, Agravo de instrumento n. 0536589-9,
Curitiba, Décima Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Costa Barros, DJPR 29/06/2009,
pág. 223). Na mesma linha, remetendo os autos para o Órgão Especial: TJSP,
Apelação com revisão n. 587.852.4/4, Acórdão n. 4131706, Jundiaí, Nona Câmara
de Direito Privado, Rel. Des. Piva Rodrigues, julgado em 25/08/2009, DJESP
25/11/2009).
-
Curiosamente, consigne-se decisão do Tribunal Paulista que sustenta a
inconstitucionalidade do art. 1.790 por trazer mais direitos à companheira do
que ao cônjuge. Ao final, a decisão determina a remessa dos autos ao Órgão
Especial: “INVENTÁRIO. PARTILHA. MEAÇÃO DA COMPANHEIRA. DECISÃO QUE APLICA O
ARTIGO 1790, II, DO CÓDIGO CIVIL. Determinação de concorrência entre a
companheira e os filhos do de cujus quanto aos bens adquiridos na constância da
união, afora a meação. Inconformismo. Alegação de ofensa ao artigo 226, § 3º,
da CF. Concessão de direitos mais amplos à companheira que a esposa Acolhimento
da argüição de inconstitucionalidade. Questão submetida ao Órgão Especial.
Incidência do art. 481, do CPC, e 97, da CF. Aplicação da Súmula Vmculante n.º
10, do STF. Recurso conhecido, sendo determinada a remessa dos autos ao Órgão
Especial, nos termos do art. 657, do Regimento Interno desta Corte”. (TJSP,
Agravo de instrumento n. 598.268.4/4, Acórdão n. 3446085, Barueri, Nona Câmara
de Direito Privado, Rel. Des. Grava Brasil, julgado em 20/01/2009, DJESP
10/03/2009).
- Por fim,
existem decisões que concluem pela inexistência de qualquer
inconstitucionalidade no art. 1.790 do CC. Há variação na linha seguida para
tal conclusão. De início, anota-se decisão que entendeu que a CF/1988 não
equiparou a união estável ao casamento, o que justifica o tratamento
diferenciado: “A Constituição Federal não equiparou o instituto da união
estável ao do casamento, tendo tão somente reconhecido aquele como entidade
familiar (art. 226, § 3º, CF). Dessa forma, é possível verificar que a legislação
civil buscou resguardar, de forma especial, o direito do cônjuge, o qual possui
prerrogativas que não são asseguradas ao companheiro. Sendo assim, o tratamento
diferenciado dado pelo Código Civil a esses institutos, especialmente no
tocante ao direito sobre a participação na herança do companheiro ou cônjuge
falecido, não ofende o princípio da isonomia, mesmo que, em determinados casos,
como o dos presentes autos, possa parecer que o companheiro tenha sido
privilegiado. O artigo 1.790 do Código Civil, portanto, é constitucional, pois
não fere o princípio da isonomia”. (TJDF, Recurso n. 2009.00.2.001862-2,
Acórdão n. 355.492, Primeira Turma Cível, Rel. Des. Natanael Caetano, DJDFTE
12/05/2009, pág. 81). Anote-se, ato contínuo, que, em relação ao inc. III do
art. 1.790 do CC, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
julgou prejudicado o incidente de inconstitucionalidade (TJRS, Incidente n.
70032664054, Antônio Prado, Órgão Especial, Rel. Des. Luiz Felipe Silveira
Difini, julgado em 16/11/2009, DJERS 03/12/2009, pág. 1). Colaciona-se ainda
julgado que concluiu pela inexistência de inconstitucionalidade no art. 1.790
pelo fato de o casamento estar em posição privilegiada em relação à união
estável, premissa a qual não se filia: “UNIÃO ESTÁVEL. DIREITO SUCESSÓRIO
VANTAGENS E DESVANTAGENS DOS CÔNJUGES E COMPANHEIROS SEGUNDO A DISCIPLINA DO
NOVO CÓDIGO CIVIL. PARTICIPAÇÃO DO CÔNJUGE, EM CONCORRÊNCIA COM OS
DESCENDENTES, NA SUCESSÃO DOS BENS PARTICULARES DO DE CUJUS E SUA EXCLUSÃO DA
HERANÇA NO QUE TANGE AOS BENS COMUNS, DOS QUAIS RECEBE APENAS A MEAÇÃO QUE
SEMPRE LHE PERTENCEU SITUAÇÃO EXATAMENTE INVERSA NA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO.
Regra do artigo 1790 do Código Civil que, entretanto, não se considera
inconstitucional, pois, na comparação global dos direitos concedidos a uns e
outros pelo novo Código Civil, a conclusão é a de que o cônjuge restou mais
beneficiado, não havendo assim ofensa ao artigo 226 § 3º da Carta Magna.
Reconhecimento, no presente processo, do direito da agravante de concorrer com
a filha do falecido na partilha da meação ideal pertencente ao mesmo no imóvel
adquirido onerosamente durante a união estável. Direito real de habitação
também reconhecido à agravante, em face da regra do artigo 7º § único da Lei n.
9278/96 não revogada pelo novo estatuto de direito privado. Recurso provido em
parte”. (TJSP,
Agravo de instrumento n. 589.196.4/4, Acórdão n. 3474069, Bragança Paulista,
Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Morato de Andrade, julgado em
03/02/2009, DJESP 26/03/2009).
A variação dos
entendimentos dos julgados demonstra o sistema caótico existente no Brasil
quanto à sucessão do companheiro. A constatação é que a Torre de Babelnão
é apenas doutrinária, mas também jurisprudencial.
A encerrar o
estudo da sucessão do companheiro, pende ainda um problema, que é aquele
relacionado à possibilidade de concorrência sucessória entre o cônjuge
e o companheiro. Ora, o CC/2002 admite que o cônjuge separado de fato tenha
união estável (art. 1.723, § 1º do CC). Então, imagine-se a situação, bem comum
em nosso País, de um homem separado de fato que vive em união estável com outra
mulher. Em caso de sua morte, quem irá suceder os seus bens? A esposa, com quem
ainda mantém vínculo matrimonial, ou a companheira, com quem vive? O CC/2002
não traz solução a respeito dessa hipótese, variando a doutrina nas suas
propostas. Vejamos algumas interessantes:
- Euclides de
Oliveira propõe que os bens sejam divididos de forma igualitária entre o
cônjuge e o companheiro.[8]
- Para José
Luiz Gavião de Almeida o companheiro terá direito a um terço dos bens
adquiridos onerosamente durante a união estável, o que é aplicação do inc. III
do art. 1.790 do CC. O restante dos bens deve ser destinado ao cônjuge.[9]
- Para
Christiano Cassettari a companheira deve receber toda a herança, eis que
prevalece tal união quando da morte.[10]
- Conforme consta
da obra escrita com José Fernando Simão, o entendimento do presente autor é o
seguinte: considerando-se toda a orientação jurisprudencial no sentido de que a
separação de fato põe fim ao regime de bens, o patrimônio do falecido deve ser
dividido em dois montes. O primeiro monte é composto pelos bens adquiridos na
constância fática do casamento. Sobre tais bens, somente o cônjuge tem direito
de herança. A segunda massa de bens é constituída pelos bens adquiridos durante
a união estável. Quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a união, a
companheira terá direito à herança. Em relação aos bens adquiridos a outro
título durante a união estável, o cônjuge terá direito à herança.[11]
A encerrar o
assunto, como bem aponta Zeno Veloso, “estamos longe de ter a completa
elucidação do problema que, no momento presente, está impregnado de
perplexidade, confusão. Só a jurisprudência, mansa e pacífica, dará a palavra
final. E vale registrar a ponderação de Eduardo de Oliveira Leite (Comentários
ao novo Código Civil; do direito das sucessões, cit., v. 21, p. 230) de que,
nesta questão, não se pode cair no perigoso radicalismo dos excessos, do tipo
‘tudo para o cônjuge, nada ao companheiro’, ou vice-versa, evitando-se medidas
extremas, quase sempre injustas”.[12]
Notas:
[1] A famosa tabela doutrinária pode ser
encontrada em: CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. São Paulo: RT, 3ª
Edição, 2007, p. 189-192; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Comentários ao
Código Civil. Vol. 20. Coord. Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva,
2ª Edição, 2007, p. 228-229; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito
Civil. Vol. 6. Direito das Sucessões. São Paulo: GEN/Método, 3ª Edição, 2010,
p. 285.
[2] CAHALI, Francisco José. Direito das
Sucessões. São Paulo: RT, 3ª Edição, 2007, p. 189-192; HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes. Comentários ao Código Civil. Vol. 20. Coord. Antonio Junqueira de
Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2ª Edição, 2007, p. 228-229; TARTUCE, Flávio;
SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Vol. 6. Direito das Sucessões. São Paulo:
GEN/Método, 3ª Edição, 2010, p. 285.
[3] Veja-se em: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes
Novaes. Comentários ao Código Civil. Vol. 20. Coord. Antonio Junqueira de
Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2ª Edição, 2007.
[4] Ver em: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes.
Comentários ao Código Civil. Vol. 20. Coord. Antonio Junqueira de Azevedo. São
Paulo: Saraiva, 2ª Edição, 2007, p. 66-67; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José
Fernando. Direito Civil. Vol. 6. Direito das Sucessões. São Paulo: GEN/Método,
3ª Edição, 2010, p. 237.
[5] CAHALI, Francisco José. Direito das
Sucessões. São Paulo: RT, 3ª Edição, 2007, p. 189-192; HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes. Comentários ao Código Civil. Vol. 20. Coord. Antonio Junqueira de
Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2ª Edição, 2007, p. 228-229; TARTUCE, Flávio;
SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Vol. 6. Direito das Sucessões. São Paulo:
GEN/Método, 3ª Edição, 2010, p. 285.
[6] Como se extrai da tese de titularidade
defendida pela autora na Universidade de São Paulo, em setembro de 2010:
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e Suceder. Passado e Presente
da transmissão sucessória concorrente. São Paulo: Versão da Autora, 2010, p.
447-457.
[7] VELOSO, Zeno. Código Civil Comentado. Coord.
Ricardo Fiúza e Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 6ª
Edição, 2008, p. 1955.
[9] GAVIÃO DE ALMEIDA, José Luiz. Código Civil
Comentado. Vol. XVIII. Coord. Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2003,
p. 217.
[10] CASSETTARI, Christiano. Direito Civil.
Direito das Sucessões. Orientação: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka.
Coord. Christiano Cassettari e Márcia Maria Menin. São Paulo: RT, 2008, p. 104
[11] TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando.
Direito Civil. Vol. 6. Direito das Sucessões. São Paulo: GEN/Método, 3ª Edição,
2010, p. 248-249.
[12] VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge
e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 97.
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